Por Rafael Simões
Outra discussão em relação à cristologia é o correto entendimento do episódio em que Jesus é tentado por Satanás harmonizado com Tiago 1.13, que afirma a impossibilidade de Deus ser tentado pelo mal. Tiago utiliza uma palavra exclusiva, ἀπείραστος, para descrever essa impossibilidade por parte de Deus. Se Deus não pode ser tentado pelo mal, e partindo do pressuposto de que Jesus é Deus e o Diabo mal, como pode ter sido Jesus tentado pelo Diabo?
Para esclarecer essa aparente contradição, alguns dividem a vida de Cristo em manifestações das suas naturezas divina e humana, que habitavam simultaneamente nele, mas agiam independentes. Alguns afirmam que apenas a natureza humana foi tentada, e que Tiago se refere à natureza divina, que não pode ser tentada. Mas mutilar Jesus desta forma é incoerente com a crença bíblica ortodoxa de que Jesus era 100% homem e 100% Deus.
Alguns harmonizam os textos pelo campo semântico do verbo πειράζω, entendendo-o como ‘provação’ e afirmando que o episódio com Satanás não foi uma tentação, pelo fato de Tiago afirmar que Deus não pode ser tentado. Assim, Jesus não estava sendo tentado pelo Diabo, mas contestado.
Há ainda outra maneira de explicação harmônica dos textos, atentando para o fato de ambos se referirem a situações distintas, o que é a preferência deste colunista. Enquanto a tentação de Jesus foi estritamente externa, Tiago está tratando da cobiça (ἐπιθυμία) do coração humano. Assim, a tentação externa, ao se defrontar com os impulsos da cobiça no coração, pode encontrar o caminho do pecado. É exatamente essa cobiça interna que não havia em Jesus, sendo ele impossível de ser tentado pelo mal. Nessa explicação, há a necessidade de entender-se κακός em Tiago 1.13 não como o Diabo, mas como a própria natureza pecaminosa humana.
Uma afirmação do próprio Jesus Cristo que ressalta essa falta de inclinação interna ao pecado está registrada em João 14.30, quando Ele afirma que o príncipe deste mundo estava por vir, mas sem nenhum direito sobre Ele. Literalmente, Jesus afirma: “e em mim ele não tem nada” (καὶ ἐν ἐμοὶ οὐκ ἔχει οὐδέν), ensinando claramente sua pureza interna.
Assim, o propósito do que Tiago descreve é esclarecer que todo pecado vem após a resposta interna que homens caídos concedem aos desejos pecaminosos que podem vir pelas tentações externas. Além disso, atenta para o perigo destrutivo da tentação interna, a cobiça, produzindo pecado, que gera a morte. Pelo fato de Jesus não possuir essa cobiça interna, fica claro que ele passou somente pela primeira fase do processo, a tentação externa. Sem a cobiça, ele nunca poderia ser tentado internamente.