Por Rafael Simões

Uma das grandes discussões no campo da cristologia é sobre a impecabilidade ou não de Jesus enquanto o mesmo estava na Terra. Que Cristo nunca pecou é fato consumado para todos os cristãos conservadores; 2Coríntios 5.21, 1Pedro 2.22 e 1João 3.5 ensinam claramente tal doutrina. A discussão engloba, porém, a possibilidade de Jesus pecar, uma vez que adotou uma natureza humana. O que se discute não é a impecabilidade de fato, mas a impecabilidade de direito. Como a tentação de Jesus está estritamente relacionada com esse assunto, faz-se necessária uma abordagem da mesma. Reconheço que a discussão se Jesus podia não pecar (peccare non potuit) ou não era capaz de pecar (potuit non peccare) é especulativa, pois não consta no Novo Testamento.

Que Jesus tinha em si as naturezas humanas e divinas pouco se discute. Quando Jesus teve fome, evidenciou-se sua humanidade. Por outro lado, a tentação realça sua divindade. Do começo ao fim do evangelho encontra-se pessoas adorando a Jesus. Ao dizer a Satanás que só Deus deve ser adorado, pressupõe-se uma firmação da própria divindade de Cristo. A natureza humana de Jesus não era igual a natureza caída humana após a queda, mas como a de Adão antes da queda.

Os que defendem a pecabilidade de Jesus afirmam que ele era humano como nós, sendo necessária a possibilidade de pecar, assim como qualquer homem a possui. Afirmam também que, mesmo sem pecado, Jesus estava na mesma condição de Adão, que pecou. Citando Hebreus 2.17, dizem que uma tentação só possui sentido se for real para a pessoa tentada. Para eles, a presença da natureza humana exigia a possibilidade de pecar pois, se assim não fosse, qualquer homem venceria a tentação. Se Jesus não pudesse pecar, ele não poderia ser o representante da humanidade na luta contra o pecado.

Contra o argumento da representação da humanidade por Jesus, em nenhum lugar do Novo Testamento Cristo é apresentado como idêntico ao homem, mas semelhante e sem pecado (cf. ὁμοίωμα em Filipenses 2.7 e Romanos 8.3; e ὁμοιόω em Hebreus 2.17). Assim, para ser um representante humano não havia a necessidade de, como os homens, ser passível de pecar. A natureza de Jesus mostra o ideal de Deus para todo homem. De fato, Jesus possuía a natureza humana, mas fortalecida pela presença da natureza divina, que torna a pecabilidade impossível. Além disso, Hebreus 13.8 afirma ser Cristo o mesmo ontem, hoje e sempre. Se ele assumiu a possibilidade de pecar quando encarnado já não seria imutável, ou sempre possuiu a possibilidade de pecar, tanto antes da encarnação quanto hoje, mesmo no Céu, o que é impensável para uma doutrina saudável de Cristo e do Paraíso.

A impecabilidade é necessária, pois negá-la seria anular a união hipostática: a união das duas naturezas em Jesus. Além disso, se Cristo pudesse pecar, a profecia de Isaías 53.9 poderia falhar, o que contraria o próprio conceito de profecia bíblica. Por sua vez, Hebreus 7.26-28 afirma ter sido Cristo um sumo-sacerdote diferente dos que vieram antes, por não possuir a fraqueza (ἀσθένεια) peculiar a todos os outros. Por fim, Cristo não possuía os impulsos descritos em Tiago 1.13, analisado no próximo artigo.

Algo inexplicável pela revelação bíblica é o paradoxo entre a impecabilidade de Cristo e sua liberdade, fato que não foi da vontade do Pai revelar aos homens. O que se pode afirmar com total certeza é que não há, em nenhum detalhe da tentação de Jesus, indícios de que o mesmo pecaria. E não seria ilógico inferir que essa máxima dita todo o restante da vida e do ministério de Cristo.

Assim, a opção deste colunista é pela impecabilidade de Cristo, mas sem negar a realidade da tentação feita por Satanás.