Por Rafael Simões

Cada arma possui um jeito correto de uso. Um arqueiro não manuseia sua arma exatamente como um policial que, por sua vez, difere muito de um samurai. Espada, arco e flecha, revólver, canhão e bazuca são armas distintas, que exigem preparo e manuseio específicos.

Da mesma forma ocorre com a Palavra de Deus. É claro e nítido que a Bíblia foi a arma utilizada por Jesus em sua batalha contra a tentação. Ela, porém, possui regras de manuseio específicas, cujo nome é hermenêutica literal-gramático-histórica. Jesus não utilizou as Escrituras fora das regras ortodoxas de interpretação da Bíblia. Pelo contrário. Ele se vale destas regras, opondo-se ao uso feito pelo Diabo.

Em sua primeira resposta à tentação diabólica, Jesus não escolhe um texto totalmente aleatório, mas apelou para Deuteronômio 8.3, evidenciando e ilustrando o relacionamento que Deus tencionou para seu povo, mas fora quebrado pela desobediência deste. Do mesmo modo que Moisés ensinou para o povo que o maná foi dado por Deus, Jesus afirma que Deus é quem O sustenta, providenciando, quando bem entender, o pão necessário.

De modo semelhante, como respostas às segunda e terceira tentações, o uso de Deuteronômio 6.13,16 não é desconexo, mas pensado didaticamente para o povo de Israel, principal leitor inicial de Mateus. Sendo assim, mesmo com contextos distintos, ele se utiliza dos princípios contidos em Deuteronômio e os aplica à sua experiência. Jesus não ignora o contexto em que o mesmo foi primariamente dito, mas se vale do mesmo para identificar-se com Israel. Deus alertou o povo a não testá-lo e adorar outros deuses. Assim procedeu Jesus quando não testou a Deus e, muito menos, adorou um ser da criação.

Nas três citações de Jesus há uma harmonia com o contexto, especialmente pela relação dele com o povo de Israel e por momentos de vida semelhantes. Ao ser o israelita perfeito, convinha que Jesus utilizasse textos cujos paralelos com o povo de Israel fossem claros.

Diferente uso das Escrituras fez Satanás. O inimigo citando a Bíblia é paradoxal, mas foi exatamente isso que ele fez, utilizando a mesma arma de Jesus, mas sem saber seu correto manuseio. Ele cita uma parte do Salmo 91; mais especificamente, os versículos 11 e 12. Esses versos são o clímax de um salmo que trata sobre a proteção divina. Tal proteção, porém, não é a parte de limites claros e definidos. O trecho ignorado por Satanás é extremamente importante para entender que a proteção divina ocorre quando alguém anda nos caminhos dele. Ou seja, o salmo não defende a ideia de que Deus protegerá seu povo, independentemente dos pecados que este comete, dos desvios e loucuras, do quão longe da vontade divina alguém esteja.

O que Satanás estava propondo para Jesus era o requerimento de uma proteção descrita no salmo, mas de maneira parcial. Satanás desejava que Jesus abandonasse a vontade do Pai, se colocasse em perigo, para então ser guardado por Deus. Mas o ensinamento do salmo é exatamente o oposto. A medida que o povo cumprisse a sua parte na aliança mosaica, obedecendo a Deus, confiando nele e andando em seus caminhos, Deus traria a proteção necessária, cumprindo o que lhe cabia nas estipulações da aliança.

O Diabo ignora completamente os padrões hermenêuticos conservadores, o contexto e o propósito inicial do Salmo. O Salmo 91 fala sobre proteção divina, mas nunca contra suicídio. As citações de Jesus, mesmo com trechos de versículos, não omitem partes importantes dos mesmos, como procedeu Satanás, e nunca ignora os contextos iniciais. Pelo contrário, se vale deles para as devidas aplicações para si mesmo.

A Palavra de Deus é a principal arma do cristão para combater as tentações. Mas se não for usada corretamente, poderá, inclusive, contribuir para as ações malignas. O cristianismo sofre quando versículos são tirados de seu contexto, quando a cultura da época não é estudada, quando o sentido original é ignorado, quando a interpretação é focada no leitor atual, e não no escritor. Além de utilizar a Palavra, todo cristão tem a obrigação de saber manusear bem a arma que dispõe.