Por Rafael Simões
Satanás nunca teve dúvida sobre a filiação de Jesus. Ele sabia que Jesus Cristo é o filho de Deus. Ele acabara de ouvir do próprio Deus Pai, registrado em Mateus 3.17: οὗτος ἐστιν ὁ υἱός μου ὁ ἀγαπητός, ἐν ᾧ εὐδόκησα (este é o meu filho amado, em quem me comprazo). Por que, então, ele inicia suas investidas tentadoras com a expressão “se és o filho de Deus”?
No grego, há quatro maneiras de escrever uma sentença condicional. Cada uma possui um significado diferente. A condicional de primeira classe é a da certeza. Poderia ser traduzida, a grosso modo, por “visto que tu és”, ou “já que você é”. Essa forma, porém, empobrece a beleza de uma oração condicional, motivo pelo qual incentiva-se o uso da conjunção “se” nas traduções.
A condicional de primeira classe é a forma como Mateus registrou a fala de Satanás. Isso evidencia que não havia dúvidas em relação à filiação de Jesus Cristo na mente do inimigo. Sendo assim, a segunda questão que surge é: o que o tentador tencionava, então, em suas investidas?
Primeiramente, é sempre bom lembrar que Satanás não possui autonomia, mas é mais uma das criaturas de Deus e, como tal, serve aos propósitos divinos. Deus é o único ser soberano e totalmente livre, que faz o que lhe apraz. Satanás, então, é usado nesta passagem como um instrumento que preparará o ministério de Jesus, escancarando que tipo de filho ele é. A tentação de Jesus poderia ser descrita como um treino para seu ministério. Na verdade, tanto o batismo como a tentação de Jesus o preparam para sua obra pública.
Satanás, na tentação de Jesus relacionada diretamente com seu batismo, procurava identificar que tipo de filho Jesus era. Em sua tentação Jesus demonstraria o que se espera do filho amado do Pai. Seria retirada a dúvida se o filho de Deus conseguiria portar-se como Israel nunca o fez. Com a tentação, Satanás estava introduzindo um Jesus político, ao passo que Jesus opta por sua missão na Terra. É evidente que a tentação não teve um cunho meramente ético, senão também messiânico. Não estava em jogo apenas a obediência de Jesus frente à tentação pela falta de comida, mas há nítida relação com o todo do seu ministério, culminando na morte e ressurreição.
Ao optar pela obediência, Jesus estava também submetendo-se à vontade de Deus, reconhecendo ser ela perfeita. O que Jesus recusou no confronto com Satanás, ele recebeu em tempo oportuno, sendo isso uma grande lição para os cristãos, a fim de não cederem às tentações em prol de algum benefício passageiro e momentâneo. Jesus obteve tudo o que lhe fora oferecido pelo Diabo, mas no momento certo, no tempo do Pai: comeu pão (Mateus 9.10; 11.19); foi ao Tempo (Mateus 21.12); e herdou os reinos (João 6.15; Apocalipse 11.15). Tendo isso por base, os cristãos também devem esperar pelo momento certo, pelo tempo de Deus, ao invés de se precipitarem e caírem em tentação.
Ao recusar as três tentações diabólicas, Jesus pode fornecer a qualidade de sua filiação diante de Deus. A vitória sobre Satã significou a irrupção do tempo salvífico. Algo que ficou claro no final da tentação para os leitores do evangelho é quem era o verdadeiro inimigo de Jesus, bem como a vontade incondicional que Jesus possuía de agradar o Pai.
Nas investidas do inimigo contra nossas vidas, a grande questão em jogo é a qualidade de nossa filiação divina. Claro que nunca teremos, e nem devemos pretender, a qualidade de Jesus Cristo, o filho par excellence. Ainda assim, a questão permanece, esperando a próxima tentação para ser respondida: que tipo de filho de Deus nós somos?